Quando estagiei no Jornal de Notícias, reportar suicídios era desencorajado. Quando ligávamos para quartéis de bombeiros e para a PJ, tomávamos nota de todo o tipo mortes, mas suicídios raramente eram noticiados. A primeira razão é o facto de que notícias sobre este tipo de morte encorajam os leitores com tendências depressivas. Sempre me disseram, e eu nunca confirmei, que houve sempre picos nas estatísticas de mortalidade após notícias sobre suicídios. Outra razão é o facto de este tipo de fatalidade ser íntimo, e se os jornais publicassem artigos provavelmente teriam de explicar motivos, panorama familiar e profissional, forma de morte, e já se sabe que depois a linha que separa o acto de noticiar do sensacionalismo é muito ténue.
Comecei a ver Por 13 Razões (13 Reasons Why no original), série norte-americana sobre suicídio na adolescência que vi quase de uma assentada. Comecei por gostar e por ficar intrigada, ao longo dos episódios fui ficando apenas intrigada, e acabei a série a detestar as personagens, o enredo, o motivo do e a forma como o suicídio da personagem principal foram representados. Quando mais penso na série, mais a detesto.
Nota: isto é a opinião de uma pessoa que não leu o livro no qual a série se baseou, mas sabe alguns detalhes do original. Possíveis spoilers no desabafo irritado que se segue.
1. Personagens mal desenvolvidas. Vemos apenas personagens a reagir ao que lhes acontece. As atitudes, incluindo muitas das más, não têm explicação lógica. As pessoas são mázinhas só porque sim. Zach é bom aluno, rapaz de família, e um doce de pessoa, até não ser. Só porque sim. Deve ser por gostar de basquetebol. É que normalmente nos filmes, os atletas são sempre cabeças de alho chocho. Um rapaz é pobre, por isso é má pessoa numas ocasiões e passivo noutras, outro é rico, por isso sente que está acima das regras e do bom senso. Pior, não sei nada sobre Hannah Baker, a personagem principal, tirando que quer ser amada e bem tratada. Ah, a sério? Após 13 horas de série, não saberia descrever a moça se me pedissem, o que é um bocado ridículo.
2. Atitudes parvas. A maioria das coisas que levou ao suicídio de Hannah Baker são tolices com excepção, possivelmente, de quatro das razões. Logo a primeira cena, a da foto que parecia algo mais, podia ser justificada. Foi chunga, que foi, mas a foto era péssima e foi tirada por terceiros. Logo, nada diz sobre o carácter da pessoa da foto. Por falar nisso, a foto que o depravado do fotógrafo amador tirou nem dava para perceber quem estava na foto. Ambas são situações de desrespeito, claro, que depois escalam à medida que outras coisas acontecem, mas a moça ou não reage como gente normal. Ninguém numa escola normal se importaria com um poema anónimo, mesmo que o conteúdo fosse vagamente erótico. Há uma lista que objectifica as raparigas da escola, a amiga de Hannah culpa-a (hã?) e ainda lhe dá uma chapada. Hannah nunca se defende como deve ser ou denuncia os (pelo menos três anteriores) eventos para que medidas sejam tomadas. Hannah testemunha uma violação e faz nenhum, mas depois dá na cabeça do namorado que também não fez nada. Hannah é apalpada e não se defende nem denuncia, é violada e não denuncia como deve ser, e reage de formas descabidas.
3. O que seria justificado se Hannah Baker desse sinais de ter uma doença mental. O suicídio é um culminar. Normalmente quem se suicida sobre de ansiedade, depressão, ou outros distúrbios psicológicos. Hannah Baker começa a série como uma jovem inteligente, sarcástica, atraente, às vezes extrovertida. Concluindo, nada que indique ser uma pessoa com possíveis tendências suicidas. A atitude da moça é acumular as emoções sem quase nunca falar com alguém senão no final e depois vingar-se... matando-se e deixando cassetes gravadas com as suas razões. Se isto não é romantizar e até glorificar sentimentos de vingança e o suicídio, não sei o que é.
4. Os bonzinhos da série deviam ser beatificados. Não há uma falha que se lhes aponte. Têm uma moral superior, defendem os injustiçados, e andam cabisbaixos. Clay não tem uma mancha no carácter. Cada lado das cassetes de Hannah representa uma pessoa que contribuiu para o seu suicídio. Clay incluído, mas só para dar um especial drama ao enredo e gerar na audiência curiosidade para continuar a ver a série.
5. As personagens são esteréotipos. Há o nerd Clay, os populares e atraentes, todos atletas e cheerleaders, os populares e sacanas, todos os atletas e principalmente os mais ricos, o artista perturbado e sombrio, o fotógrafo pouco popular, a asiática estudiosa e preocupada com a reputação, o misterioso mais adulto (que por acaso é gay), o gay óbvio da escola, os pouco populares que são saco de pancada. Isto só para resumir.
6. Esta é uma série baseada no diálogo entre personagens, mas o diálogo é péssimo e pouco realista. Nenhum adolescente que eu ouvisse, nem os de documentários e de outras séries e filmes norte-americanos, fala como estas personagens. As personagens soam ao que os adultos acham que os adolescentes de hoje em dia soam.
7. Por falar nisso, muitos dos actores não parecem adolescentes do ensino secundário. Embora seja comum que os actores sejam adultos em filmes sobre jovens, neste caso, a juntar a tudo o resto, isto não dá validade ao enredo, não permite que o público-alvo se identifique mais, e deturpa a mensagem principal, que sim, é válida e necessária, mas não da forma como a séria a capta, que assim no geral se resume a: pessimamente.
8. Toda a gente matou Hannah Baker. É esta uma das mensagens que é directamente dita por Clay. Discordo totalmente. A série é sobre suicídio, não homicídio. É claro que bullying contribui, mas apenas se a pessoa vítima de bullying for predisposta a doenças mentais que levam ao suicídio. E Hannah nunca pareceu predisposta. Não estão lá os sinais, incluindo os mais óbvios, da apatia e tristeza à auto-mutilação, porque há normalmente um crescendo em termos de auto-flagelação antes do suicídio. Depois há belas mensagens como a de Skye, personagem que se auto-mutila, que diz que isso é o que se faz em vez de cometer suicídio, como se a mutilação não fosse por si só um problema grave, como se não fosse tão grave como o suicídio, o que não só minimiza o acto, como até o encoraja como forma de escape. Em retrospectiva, parece-me doentio.
9. Hannah Baker não sabe que não é não. Este assunto é delicado. Na série, Hannah recusa Clay de forma decidida, cinco vezes pela minha contagem, mas sem o querer. O que ela queria era que Clay tivesse ficado, porque claramente ele é a solução para todos os seus problemas (sarcasmo). Mais tarde, Hannah fala com o psicólogo da escola que nada pode fazer porque ela não quer denunciar quem a violou, mas que ainda assim escuta atentamente, recusa chamadas para lhe dar a devida atenção, e Hannah recusa sempre ajuda, mas quando sai porta fora, espera por momentos na esperança de que o psicólogo a vá procurar. A moça espera que as pessoas adivinhem que as suas recusas signifiquem afirmações. Deu-me nervos.
10. O amor cura tudo. Hannah critica constantemente a vida social dos adolescentes, apesar de ela própria participar em todos os rituais típicos. Mais ainda, a vida de Hannah parece centrar-se somente na sua (falta de) popularidade e no facto de ser ou não alvo das atenções dos rapazes. A série dá a entender que se Clay tivesse dito que a amava, as coisas seriam diferentes, o que reduz a mensagem da série de forma destrutiva, fazendo crer que a cura para o suicídio é o amor, ou de forma mais dramática, que a cura é a atenção de um rapaz.
11. As raparigas da série são tolinhas. Preocupam-se com a reputação e com a vida amorosa. São todas atraentes e fúteis. Pouco mais. Não sabemos de quase nada sobre os seus sonhos, ambições, planos. Nada. As únicas mulheres melhor caracterizadas são as mães das personagens principais, e mesmo assim a fasquia continua baixa porque ambas são ingénuas e não vêm o que está à frente do seu nariz.
12. A melhor cena de toda a série, para mim e de um ponto de vista cinematográfico, foi a do suicídio. No livro, Hannah mata-se com comprimidos, mas na série corta os pulsos. A cena foi mostrada ao detalhe e fez impressão, mas pode ser vista como um tutorial para aqueles que estejam a pensar no assunto. Todas as associações que consciencializam e têm como objectivo prevenir suicídios desencorajam retratos deste género e por boa razão. Compreendo que os criadores pudessem pensar que mostrar a violência do acto poderia ser uma forma de deter aqueles que contemplam suicidar-se, mas a forma como romantizam a estória, como glorificam, talvez indirectamente, as escolhas de Hannah e a tornam heroína ou mártir, tudo isto embeleza o acto final.
13. A série dá a entender que pedir ajuda é infrutífero. Nunca vemos alguém ajudar Hannah, nunca a vemos pedir ajuda a sério, quase nunca alguém a compreende. O lado produtivo desta série seria informar e prevenir, mas ao tornar Hannah num puzzle, apenas serve de entretenimento. Os criadores dizerem que as intenções foram boas não valida as intenções. Não vejo na série essas intenções de alertar para o suicídio. Vejo apenas um romance em que uma rapariga se vinga de quem lhe fez mal e que de caminho se torna popular, coisa que não foi em vida, numa de dar uma lição aos maus da fita, que agora na generalidade se culpam, o que retira da pessoa que se suicidou qualquer responsabilidade pelo acto em si. Tudo isto mostrado de forma superficial e com um quê de intriga para manter audiências, e na minha opinião de forma irresponsável.
Vanessa