Às vezes escrevo e apago textos porque me parecem lamurias. Ontem vi a foto da menina síria, Sahar Dofdaa, que morreu de fome. As únicas coisas que me ocorreram escrever sobre o assunto são nada mais que lamurias. Por exemplo, a imagem ficou-me gravada no cérebro. Não os pormenores. Na minha memória persiste apenas um vulto esquelético na cama. Não lhe vejo o rosto. Mas isso não me impediu de não conseguir dormir. Um bebé de um mês de idade com menos de dois quilos. Uma mãe mal nutrida sem conseguir amamentar.
De mim, só lamurias. Não consegui dormir e não consegui esquecer nem depois de dormir. Depois, quando comi, pensei no bebé. Isto são meros lamentos. Sou como a Murta Queixosa do Harry Potter. Um fantasma que choraminga. Na verdade, o que eu sinto não tem importância na escala global das coisas. Sahar Dofdaa e outros tantos bebés morrem todos os dias depois de o seu corpo se consumir por dentro até desaparecer.
São crimes sem punição suficiente. Já são milhares de vidas perdidas assim. Quando vi as notícias, todos os pormenores políticos, estratégicos, militares, médicos tornaram-se um borrão de palavras que nada me diz, mesmo sabendo que informação é poder. Quando estudei jornalismo não me ocorreu que a informação não servisse de nada em tantas ocasiões, que notícias sobre bebés-esqueleto não servissem para os salvar, que a indignação pública não nos movesse para a acção, que fosse possível haver um fosso entre países.
A 18 de Abril de 2008 falecia Edward Lorenz, pai da Teoria do Caos. Eu, verde na profissão de noticiar, escrevia no jornal digital JPN, "Lorenz partiu da premissa de que pequenos eventos podem causar mudanças caóticas a médio ou longo prazo e na década de 60 (...) desenvolveu um estudo intitulado 'Previsibilidade: O bater de asas de uma borboleta no Brasil desencadeia um tornado no Texas?'". Tinha sido a primeira ocasião em que os conceitos que me apresentavam as pessoas que entrevistei, por serem matemáticos e eu uma mera escritora, ultrapassavam a minha compreensão e tinham causado, por ironia, um verdadeiro caos mental.
Até que me foquei no conceito apresentado por um dos entrevistados. O caos determinístico. A ideia de que pode haver na desordem um conjunto de aspectos não aleatórios. Um padrão que faz sentido. Um sistema com explicação e resolução. As crises mundiais, as de fome, as de guerra, as financeiras, todas elas são caos determinístico. Todas elas são causa e consequência e todas as que têm impacto hoje em dia foram causadas por nós. Somos nós a borboleta que bate as asas num sítio e causa um tufão a quilómetros de distância.
As alterações climáticas geram conflitos. Nós agravamos as alterações climáticas. Nós persistimos no uso de combustíveis fósseis que degeneram as alterações climáticas que geram conflitos. Nós escondemo-nos por detrás de ideologias que se alimentam do caos gerado por nós e nos separam uns dos outros. Nós deixamos que tudo isto aconteça e consequentemente deixámos que Sahar Dofdaa morresse. Aqui está a Teoria do Caos.
Com isto, resta-me apenas oferecer um pedido de desculpas pessoal a todas as Sahar Dofdaas deste mundo.
Vanessa
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