terça-feira, 24 de outubro de 2017

O Círculo versus The Truman Show

Aviso: Spoilers. Em O Círculo (The Circle em inglês), de 2017, Mae é contratada pela maior empresa de tecnologia e redes sociais do mundo. A empresa investe em aparelhos e software com o intuito de tornar o mundo melhor através da democratização da informação, e da transmissão e cruzamento de dados. Todo o mundo parece achar boa ideia. Mae vai caindo numa teia de ilusões e torna-se porta-voz da empresa, uma influencer, e as suas decisões passam a ter influência não só sobre os que lhe são queridos, mas sobre toda a sua audiência.

Em The Truman Show - A Vida em Directo, de 1998, Truman é uma estrela de televisão sem o saber e não conhece outra realidade senão a que foi criada para o programa no qual a sua vida é transmitida. Todos os que conhece são actores, muitos dos produtos que usa são na verdade patrocínios, todas as decisões estão fora do seu alcance. Todo o mundo parece achar boa ideia assistir à vida de uma pessoa que não sabe que é o protagonista de um programa televisivo. Truman vai saindo da teia de ilusões ao longo do filme.

O Círculo tem uma cotação de 5,3 no IMDb. The Truman Show tem 8,1. O Círculo apresenta-se como drama, ficção científica e thriller. The Truman Show como comédia, drama e ficção científica. À parte isso, por que razão decidiria eu juntar os dois filmes numa única publicação? Para mim, as temáticas são semelhantes. Privacidade. Entretenimento. Informação. Futuro. No entanto, ao primeiro dei uma classificação de 3 e ao segundo dei um 9. Podia ter escolhido A Rede Social ou o livro 1984. Mas pareceu-me que a comparação mais justa seria o Truman Show. Um protagonista, um conflito, uma resolução catártica. No Círculo foi isto mas em mau.

Uma das premissas para que uma obra de ficção seja aclamada é o protagonista ser representante de todos nós. Há que haver algo que nos faça relacionar com a vida, os conflitos internos, ou até mesmo só a aparência do protagonista. Mae, zero. Truman, 1. Mae é aborrecida, apática a maior parte do tempo, demasiado simpática, demasiado ingénua, demasiado cega. Truman é o rosto de todos nós. Mas com carisma.

Círculo quer ser um filme sério. Um drama com proporções plausíveis. Só que não. Alguma vez milhares de pessoas aceitariam perder a sua privacidade da forma que o filme mostra? O filme faz com que a empresa pareça um culto e não uma hipótese, os seguidores como seres sem alma e zero sentido crítico, groupies até. The Truman Show difere no sentido em que se apresenta maioritariamente como uma comédia. É uma versão satírica de um cenário futurista. É intencionalmente exagerado. Torna-se assim uma crítica social com bom gosto.

O conflito é um dos catalisadores de toda a acção. No Círculo, os conflitos não passam de pormenores. A questão da privacidade é constantemente posta de lado em função do bem comum, mas quase sem consequências que causem impacto visível. Os conflitos que decorrem da acção parecem supérfluos, despojados de significado. Até há alguém que morre. Mas minutos depois, a protagonista continua na ilusão. Em Truman o impacto das emoções é gerido com mestria e não só porque Jim Carrey é um actor brilhante. O impacto sente-se muito mais porque as personagens, até as que na ficção são também ficcionadas, estão bem desenvolvidas.

A resolução por isso é muito mais emocionante em Truman Show. No Círculo nem tanto. Em ambos os filmes, o conflito é causado por criadores e a resolução no acto de os desmascarar. No Círculo o acto final é apenas uma coisa que acontece para concluir o filme. Não há um escalar de acontecimentos. A protagonista vai aceitando e até impondo, contribuindo para o conflito em vez de o tentar combater, e depois passa a perna aos criadores. Em Truman Show há toda uma carga simbólica que embrulha o desfecho com um laço bonito quando Truman se revela metaforicamente como o True Man, caminha sobre a água como Jesus e confronta o criador.

Ambos os filmes apresentam possibilidades muito remotas e até absurdas de formas diferentes. Ambos chegam a ser caricaturas. No entanto, um deles leva-se demasiado a sério. O outro satiriza. No fundo, o enredo de Truman Show parece um círculo enquanto que o Círculo parece uma linha em ziguezague.

Vanessa

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