segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Simbologia e interpretações do filme Mãe! de Darren Aronofsky

Darren Aronofsky é daqueles realizadores que me faz ver filmes sem sequer ter visto o trailer e independentemente do tema. Foi assim que me apanharam na sala de cinema a ver Noé, filme que me desapontou o suficiente para agora ver em Mãe!, o mais recente filme de Aronofsky, e sentir-me vingada.

Façam-me aí uma lista de filmes mainstream dos últimos 10 anos que tenha despertado tanto burburinho e interpretações sobre o seu significado como Mãe! É verdade que quem desgostou, desgostou a sério, mas quem ficou intrigado gerou conteúdo interessante, o que é das coisas mais valiosas que fazemos enquanto humanidade. Que é uma das minhas interpretações do filme, além do teor altamente religioso.

Resumo com spoilers: se a Mãe Natureza casasse com (um) Deus, o resultado seria este: uma relação abusiva e muito desequilibrada. Deus é a única personagem nos créditos finais cujo nome, "Ele", começa com letra maiúscula, mas penso que pode representar qualquer deus e não apenas o judaico/católico. Este facto é reforçado pelo facto de que Ele frequentemente apelida a sua co-protagonista (e força opositora) de deusa.

Neste filme, Mãe é simbólico de criadora nata e progenitora, e Deus representante da criação artística. A casa simboliza o planeta, que pode não ser necessariamente a Terra. Pode ser o Éden ou uma realidade paralela. O intuito da Mãe é torná-lo um paraíso enquanto atende às necessidades de Deus.

Deus, por outro lado, está sempre mais preocupado com a criação e com os seguidores das suas criações. Mãe, também uma das suas criações, como se vê logo no início do filme, é ao mesmo tempo musa inspiradora e criadora por si só. O primeiro homem que visita a sua casa é claramente Adão. Numa das cenas vemos que tem o flanco ferido e pouco depois aparece a sua mulher, que representa Eva, que acaba com a sua solidão. 

O homem e a mulher, símbolos da humanidade, impõem a sua presença na casa e desdenham das preocupações de Mãe. Deus parece tão encantado com a atenção que deixa que façam o que bem lhes entender, excepto tocar no cristal que no início do filme gera a criação de Deus. Mas é claro que o casal também não o leva a sério, tal como aconteceu com o fruto proibido, o que os leva a deixar cair o cristal, que se despedaça.

Mais tarde surgem os dois filhos do casal, que recriam a história de Caim e Abel. O homicídio de Abel deixa na casa uma marca que surge ao longo do filme, tanto quanto o coração da casa vai aparecendo para demonstrar as consequências dos acontecimentos, e abrindo precedente para outros crimes que depois ocorrem.

Todo o primeiro acto do filme é a história do Antigo Testamento, no fundo. A criação artística que leva o Homem a visitar Deus para o idolatrar pode ser interpretada como sendo um dos livros da bíblia. 

O episódio dos convidados a destruírem o lava-loiças, criando uma fuga de água, simboliza o Dilúvio, que trava a vaga de visitantes indesejados por momentos, levando a que a relação da Mãe e de Deus se aprofunde e culmine na criação do filho. Este filho representa Jesus, sim, mas também a criação em si. 

Vemos que a gravidez inspira em Deus a escrita de um poema que se torna sucesso mundial. Talvez símbolo do Novo Testamento. Quando a sua escrita se torna famosa e a casa é de novo invadida, decorrem ao mesmo tempo motins, ataques terroristas, e sinais de fanatismo. São acontecimentos simbólicos de crimes em nome da religião. Vemos também pessoas a abençoar outras em nome de Deus enquanto a casa vai sendo destruída.

O filho que tanto representa Jesus como a criação artística, torna-se mais um fruto do trabalho da Mãe, que tenta em vão proteger a criança. Numa das cenas mais arrepiantes do filme, Deus, deslumbrado, mais uma vez deixa que a humanidade leve a sua avante, o que resulta na morte do bebé às suas mãos.

Quando Mãe se aproxima do local, vemos o bebé desmembrado e a ser consumido pela humanidade. Há aqui uma sátira em relação à comunhão católica, mas a cena pode também ser interpretada como uma crítica ao acto da criação artística, que é depois consumida com fervor e minuciosamente criticada em praça pública.

A casa é uma extensão da Mãe. Vemos mais tarde quando a Mãe se revolta que as suas acções são acompanhadas de sons como trovões, mas que quando a humanidade se rebela contra a mãe, o que ouvimos é sons de fogo de artifício. A humanidade consume a casa, levando pedaços dela para comprovar a presença no local, destruindo para proveito próprio, agindo sem se preocupar com as consequências dos seus actos.

Darren Aronofsky não quis comentar um dos pontos mais intrigantes da película, o medicamento de cor amarela que Mãe toma sempre que se sente mal, por isso a minha interpretação baseia-se em especulação. O medicamento simboliza, a meu ver, o Amor que cura todos os males, uma vez que quando descobre que está grávida, Mãe deita fora o remédio, sabendo que contém em si todo o amor possível, o amor de mãe. É por isso que Mãe se revolta a ponto de destruir a casa, após o fruto do seu amor ter sido destruído.

O medicamento pode também ser interpretado como sendo a ingenuidade ou a ignorância, talvez tendo sido adquirido por Deus, uma vez que Mãe parece fazer um reset sempre que o toma, e tudo fica bem depois do remédio tomado; ou a interpretação pode ser mais literal, como uma crítica ao consumo de medicamentos, que como efeito secundário nos tornam adormecidos e passivos perante a realidade.

No final, Mãe revolta-se a tal ponto que incendeia a casa, pegando fogo aos tanques de petróleo (mais uma crítica?) da casa. Ainda assim sobrevive e consegue oferecer a Deus uma última coisa, apesar de achar que já lhe tinha dado tudo o que podia: o cristal que permite a Deus reiniciar o ciclo, e o filme termina como começou.

Será o ciclo sempre assim, ou será que existe um ciclo diferente para cada um dos livros da bíblia, se assim interpretámos a criação literária de Deus? Será cada ciclo simbólico da realidade que vivemos, ou será que há mais realidades que desconhecemos e cada ciclo representa uma realidade diferente?

Será que Deus está preso no ciclo para sempre, ou existirá a possibilidade de que Mãe consiga perdoar a humanidade pelos seus actos e não gerar a destruição subsequente, terminando a história num final feliz?

A minha interpretação pode estar aquém das intenções de Darren Aronofsky. O filme pode ser uma representação de um vírus, tanto quanto sei, vírus esse que destrói o hóspede, ou pode ser uma crítica directa a relações abusivas, ou uma sátira em relação a doenças mentais. Cada um é livre de encontrar no filme a simbologia que melhor se adequa às suas crenças, tal como numa determinada cena cada leitor viu na obra d'Ele uma interpretação diferente da de outros, e alguém sentiu que as palavras eram dirigidas a si.

Este filme merece ser visto. Pode parecer pretensioso, e se calhar é, mas gera na audiência reacções viscerais e pede interpretação e crítica, acções importantes para a saúde mental e para a sociedade e o mundo.

A única certeza que tenho é a de que este é um filme de terror. Nisso concordo com a mulher que não se calou durante o filme, levada pela filha (daquelas tipas que põem os pés no assento da frente e abanam toda a fila de cadeiras) com a suposição de que ia ver um género diferente. Isto foi um filme de terror.

Porquê? O filme teve três planos, quase nenhum deles aberto, e a maioria centrada na face de Mãe. O filme tem como ponto de vista a Mãe e a audiência vê apenas o que a Mãe vê e ouve apenas o que a Mãe ouve. O mau da fita neste filme de terror é a humanidade. O mau da fita neste filme de terror é a audiência que assiste ao filme.

Há lá coisa mais aterrorizante que isso?

Vanessa

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