Quem vive no país onde nasceu, que é o país onde quase toda a sua família nasceu também, nunca vai perceber bem o que é não conhecer a maioria dos seus familiares e também nunca vai perceber a sensação de perder a conta ao número de familiares que desconhece ou que não sabe ao certo de onde vem ou que não se lembra em concreto onde está. Quem está habituado a ocasiões de mesa cheia, em cima e em volta, não compreende o que é natais e aniversários e páscoas só com a família mais chegada, que são duas ou três pessoas, e comer nessas ocasiões pratos típicos do país onde está, mas também outros cujas receitas passaram de geração em geração, por quem as aprendeu num outro país onde abundam os ingredientes usados nos pratos.
Quem vive no país onde nasceu, que é o país onde quase toda a sua família nasceu também, não sabe o que é não ter família no interior ou não conhecer ou não se lembrar do que é ir à terra.
Há muitas outras coisas que quem não é migrante não compreende por nunca ter sentido na pele, mas que acabam por moldar e influenciar um ser humano que tenha vivido num lugar onde não nasceu e no qual tenha uma aparência ou costumes ou aspectos culturais fora da norma nessa sociedade.
Aqui sou parecida com os locais. Mas se vejo turistas brancos na rua, identifico-me mais com eles. Olho para eles e revejo-me. Olho para eles e vejo-me como igual a eles. Certamente que eles olham para mim e vêem mais uma local com uma cultura diferente, mas eu olho para eles e às vezes até sorrio e tenho de me esforçar por lembrar que eles estão a ver mais uma indiana e não vão perceber que temos mais em comum do que tenho eu em comum com todos os outros indianos. No fundo, eu também sou uma turista.
O problema é que até agora eu vivi em santa ignorância. Nunca me cheguei muito a tradições nem percebi muito bem o espírito familiar que vejo amigos a nutrir.
Mas agora conheço o que esses amigos conheceram toda a vida e hoje, aos 29 anos, feitos nesta terra que até é um pouco minha, apercebo-me da minha própria ignorância, até agora santa por nunca ter sido desvendada.
Conheci com 29 anos uma irmã do meu pai e as filhas dessa tia e os filhos das filhas dessa tia, mais a irmã da mãe da minha mãe, avó que nunca conheci, e a filha dessa minha tia-avó e ainda as filhas dessa filha.
Há ainda primas e primos e mais tios e mais pessoas do meu sangue que estão noutros países e que se calhar nunca vou conhecer. Há depois aqueles que estão em Portugal que querem vir para Goa. Até os meus pais.
E eu, que até agora vivi em santa ignorância, longe destas andanças, não sei o que fazer ao conhecimento recém adquirido de que sou mais ou menos turista aqui, mas sou também mais ou menos turista em Portugal, assim como sou mais ou menos turista em Moçambique, onde está a outra parte das minhas origens.
Da mesma forma que sou mais ou menos turista sou também pessoa mais ou menos, porque um bocado de mim está aqui, outro bocado está acolá e outro bocado acoli. Nisto virei puzzle, com peças por todo o lado.
Há agora uma parte de mim que gostava de voltar para a santa ignorância. Mas grande parte de mim já se habitou à ideia, ainda que não saiba ao certo o que fazer com ela.
Vanessa
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