terça-feira, 24 de abril de 2018

Sublime Ruby, o Kit Kat rosa de uma empresa com práticas negras

Entusiasmados com a chegada do Kit Kat Sublime Ruby já em Maio? Eu até estaria, se o chocolate cor-de-rosa não tivesse sido produzido por uma empresa que mais parece vinda do lado negro da força. Foi em 1974 que as práticas de marketing agressivo da Nestlé foram desmascaradas num relatório chamado The Baby Killer. O mundo ficou a saber que a publicidade da marca sugeria que alimentar bebés com fórmula infantil (da Nestlé, claro) deixava as crianças mais saudáveis, fortes e felizes; que a marca oferecia produtos para incentivar as mães a adquirir fórmula, como biberões e amostras de produto; que a publicidade ia além da publicidade com vendedores da marca vestidos de enfermeiros a dar conselhos nutricionais, relações duvidosas entre intermediários da Nestlé e hospitais locais, etc. Tudo isto, claro, em países em vias de desenvolvimento, em comunidades com estatísticas descomunais em termos de iliteracia e onde abundava a pobreza, e até em locais onde a água era insalubre, o que agravou o problema porque a fórmula infantil é diluída em água.

Ainda hoje em dia as práticas escandalosas da Nestlé continuam, com a marca a promover a semelhança (ou "inspiração") da sua fórmula infantil ao leite materno, apesar de a Organização Mundial da Saúde proibir que se compare um a outro em campanhas publicitárias, e a usar sacarose em fórmulas infantis na África do Sul enquanto publicitava no Brasil e em Hong Kong que a sua fórmula sem sacarose era benéfica para a saúde dos bebés. Um relatório da organização Changing Markets Foundation apontou estas e outras irregularidades e "comportamento inconsistente" por parte da Nestlé na comercialização de 70 produtos lácteos em 40 países.

Em 2010, a Greenpeace promoveu uma campanha contra o uso de óleo de palma na confecção do famoso Kit Kat da Nestlé. Em causa está a desflorestação que a produção do óleo provoca, e em particular estava na linha de fogo das práticas abusivas a Indonésia, que desde 1990 perdeu 31 milhões de hectares, ou o equivalente ao território da Alemanha, de floresta. A Nestlé aparentemente não ficou indiferente e fez promessas. Em 2017, essas promessas foram postas em causa. Diz o site da marca que nesse ano 58% da totalidade do óleo de palma usado foi adquirido de forma responsável e que 48% das origens podiam ser identificadas. Não é o suficiente, porque a própria Nestlé tinha prometido não usar óleo de palma de áreas naturais até 2013 e que ia acabar com o uso de óleo de palma associado à desflorestação até 2015, em resposta à campanha da Greenpeace em 2010, e esses compromissos não foram levados à letra. Graças à internet, a opinião pública está atenta a estas coisas.

Não acabam aqui os escandalos associados à Nestlé. Há ainda o caso da água. Em 2016 a Nestlé era líder de vendas de água engarrafada com lucros de 16 mil milhões de dólares só nos Estados Unidos, e segundo vários artigos e documentários as práticas para obter a água são abusivas, no mínimo. Estamos a falar de uma empresa cujo o ex-CEO Peter Brabeck sugeriu certa vez que a água não é um direito e deve ser privatizada, o que é precisamente uma das práticas da Nestlé. A corporação alegadamente explora locais onde as leis são lassas, onde quase não há fiscalização, onde o território é suceptível de secar, e por vezes sem licença para extracção da água. E não estou a falar de práticas duvidosas em países que nunca aparecem nas notícias, embora isso aconteça. Até nos Estados Unidos e no Canadá a Nestlé extrai água onde a água é escassa para depois vendê-la à população, enquanto sujeita os habitantes à poluição provocada pela sua produção, sendo dos casos mais conhecidos o do Paquistão, e tudo isto sobre a promessa de criação de emprego e investimento local.

E de onde vem o cacau para os chocolates da Nestlé?  No site (traduzido do inglês), a empresa diz que "nenhuma empresa" que usa cacau da Costa do Marfim e do Gana "pode remover totalmente o risco de trabalho infantil da sua cadeia de produção." Neste momento está em tribunal o caso norte-americano, com a acusação de que a Nestlé não informa os consumidores das alegadas práticas de trabalho infantil ou de escravatura, e que a empresa nada faz para remover esse tipo de realidade da sua cadeia produtiva enquanto lucra com o negócio do cacau. Não são acusações novas e provavelmente não será o último caso a vir ao de cima.

É por estas e por outras razões que como consumidora tento não consumir produtos da Nestlé, que são muitos. Como tal, prefiro abster-me de provar o tal do chocolate Sublime Ruby. O chocolate pode ser rosa, mas as práticas da Nestlé são tudo menos isso. Pelo contrário. São bem negras.

Vanessa

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Fui ajudar a limpar uma praia

Quando me juntei a uma iniciativa do Movimento Vamos Limpar a Praia e do Programa Bandeira Azul da ABAE no Dia da Terra, 22 de Abril, esperava um domingo passado na praia de São Julião, em Sintra e Mafra, a mexer o traseiro, para variar, e a apanhar chuva, porque o céu ameaçava desabar. Acontece que, moído o corpo depois de umas duas horas pelo areal e pelas rochas, dois sacos de lixo apanhado colocado no contentor, já sentada no único café aberto a descansar e re-hidratar, apercebi-me de uma coisa. Duas, aliás. Uma, há muito que não me juntava a uma iniciativa de âmbito cívico e de consciencialização. Dois, as pessoas são mesmo porquinhas.

Nos dois sacos, a prova do crime. Uma palmilha, pedaços de corda abandonada, plástico abundante, especialmente pauzinhos de cotonetes e de chupa-chupas, palhinhas, bocados de brinquedos, esferovite esfarelado, sacos parcialmente destruídos, dois aplicadores de tampão, e materiais não orgânicos no geral.

Contudo, findo o dia, a esperança. Havia no grupo avós, pais e crianças. Pessoas que nos viram a limpar, curiosos e impelidos pela iniciativa, juntaram-se a nós. E em vez de deixarmos a praia mais suja do que quando chegámos, como tantas e tantas vezes acontece, deixámo-la mais limpa e com um outro ar.

Vanessa

sexta-feira, 13 de abril de 2018

Pensamentos de sexta-feira

Já é sexta-feira. Esta semana ainda não escrevi no blogue. Saí todos os dias, mas nunca andei o suficiente. Mais uma semana sem lavar roupa. Só fiz uma sopa. Não comi verdes suficientes. Não me lembrei nunca de endireitar as costas enquanto trabalhava. Antes do fim-de-semana vou fazer qualquer coisa fútil, tipo pintar as unhas. Não avancei quase nada no livro que estou a ler. Devia ter visto menos vídeos no YouTube. Há muito tempo que não aprendo uma palavra nova. Já está na altura de voltar a escrever criativamente mais vezes. Já é sexta-feira e quase não apanhei ar puro. Devia ter comprado mais snacks. Não exercitei as mãos nem os pulsos o suficiente e agora doem-me. Se calhar está na altura de voltar a aprender alguma coisa. Será que estou a precisar de vitaminas ou é o meu cérebro que está a envelhecer? Para a semana vou dormir cedo e acordar cedo. Há muito tempo que não faço uma máscara facial. Tenho de começar a apagar emails. Preciso de consumir mais fibra. O que vou fazer para o jantar? Será que vai estar bom tempo no fim-de-semana?

Pensamentos de sexta-feira. Todas as sextas.

Vanessa

quinta-feira, 5 de abril de 2018

King

Tenho tido algum azar com as minhas recentes escolhas literárias. Quando assim acontece, recorro a escritores que nunca me desiludiram. Desta minha lista constam uns quantos, talvez menos de dez, mas invariavelmente recorro a Stephen King. É estranho um autor de estórias de terror ser o meu porto (literário) seguro. É também uma sorte, porque King já assinou 204 livros, por isso há variedade, e também porque mesmo quando o enredo não me cativa como gostaria, nenhum livro me desilude. Tem qualquer coisa que ver com a escrita.

Outros escritores prolíferos que nunca me desiludiram são Paul Auster, Agatha Christie, Arthur Conan Doyle... e José Saramago. Claro que há outros, como Jane Austen, Wilkie Collins, ou as irmãs Brontë. Mas Stephen King ganha sempre. Há a comida caseira reconfortante. Massa com queijo, puré de batata, piza, arroz xau xau. Há músicas que nunca passam de moda. Há roupas já antigas que conhecem as formas do corpo e que sabem bem na pele. E depois há escritores cujas palavras têm o toque familiar de tudo o que acabei de escrever.

Os livros de Stephen King estão nessa categoria. Pensando melhor, talvez estejam numa categoria à parte, como quando apetece especificamente um hambúrguer do McDonald's e não um hambúrguer qualquer ou uma piza da Pizza Hut e não qualquer outra ou um gelado da Häagen-Dazs em vez de outros. Só que cada vez que leio um livro de King, é um livro novo. Nunca reli algum. É sempre uma estória por estrear. Não é como os livros do Harry Potter. É um fascínio renovado de cada vez. Não é como os livros gastos do uso porque regressar a certos universos é como chegar a casa. É mais um livro na estante que nunca foi tocado. Não é como descobrir algo novo num livro que já se leu. É um cenário nunca antes visitado. Não é voltar a travar amizade com personagens que uma pessoa conhece como amigos. São personagens desconhecidas ainda. É muito.

Vanessa

terça-feira, 3 de abril de 2018

Vi Ready Player One e já me esqueci, vi Annihilation e adorei

O mais recente filme de Steven Spielberg, Ready Player One, não me convenceu com o seu ímpeto de futuro revivalista. Assim que começou, capturou com a música. Assim que a narração começou, perdeu-me. Narração num filme é para mim preguiça. São poucos os filmes em que perdoo a narração. Se eu quisesse narração ouvia um livro em áudio, não ia ver um filme. Por outro lado, quando é a personagem principal que está a narrar tem de haver um propósito. O propósito, no entanto, perde-se em grande parte porque se a personagem está a narrar é porque sobreviveu. Por isso, narração é um mini spoiler. Não me vou alongar com a crítica nem com o meu snobismo em relação ao filme, porque o filme ganhou no que toca ao entretenimento.

Resumidamente, o filme passa-se num futuro credível onde parte das nossas vidas passa-se numa realidade virtual, o OÁSIS, mas continuamos escravos de corporações, do sistema, da tecnologia, e continuamos humanos escravos, mas agora com entretenimento em alta definição. Só que o criador do OÁSIS deixou uma competição que pode democratizar o sistema. O maguffin consiste em três chaves que qualquer jogador pode encontrar e que levam a um desafio final onde o vencedor ganha controlo do OÁSIS. Pelo caminho há músicas, referências a jogos, livros, até cenas de filmes que fazem as delícias dos fãs do cultura pop dos anos 80 e 90.

Só que uma estória não se faz de easter eggs (nem mesmo no domingo de Páscoa), de alusões a obras-primas (que até são melhores do que a obra que as referencia), ou de efeitos especiais espectaculares, especialmente vistos num ecrã IMAX 3D. O filme deu para rir, para congregar a nostalgia revivalista no escuro do cinema, ponderar um futuro nada risonho, mas pouco mais. Para a semana não me vou lembrar do filme. Não vou questionar metáforas. Não vou recordar nomes de personagens. Mais depressa vou querer reviver os filmes, os livros e os jogos que Ready Player One usa para avançar o enredo do que a própria película.

Na outra face da moeda está Annihilation, um filme que a Paramount decidiu ser demasiado inteligente para as massas (parafraseando) e que a Netflix foi responsável por democratizar. Vi o filme antes de Ready Player One e continuo a pensar nele. Ambos os filmes me fazem querer ler os livros, mas sei que com Annihilation a experiência vai ser diferente. O conteúdo do filme é multifacetado, de tal forma que ainda o estou a processar e em breve escreverei sobre ele. Para já, é o meu filme preferido do ano. Viva a complexidade.

Em jeito de resumo, em Annihilation Alex Garland, escritor de outro filme que se tornou um preferido meu, Ex-Machina, transpôs em película o primeiro livro da trilogia de Jeff VanderMeer, Southern Reach Trilogy, onde a bióloga Lena se junta a uma missão para explorar uma área secreta onde uma aterragem alienígena provocou um microclima chamado Shimmer. O enredo é intrigante e vai satisfazendo a curiosidade, mas nunca de forma 100% satisfatória. É no fundo um mistério, além de ser um filme de ficção científica. E nunca o filme me desapontou ao longo dos três actos, nem em termos de efeitos visuais, nem em termos de estória.

Tive pena que o filme não tivesse merecido, aos olhos dos big bosses do cinema, um lugar nas salas de cinema, cujos cartazes neste momento me parecem bem deprimentes. Às vezes uma pessoa precisa de mais do que explosões e música e frases feitas. Às vezes o escuro do cinema também é bom para questões complexas.

Ready Player One: 0.
Annihilation: 1.

Vanessa