quinta-feira, 31 de agosto de 2017

O Senhor das Moscas em versão feminina... feita por homens

William Golding, autor de O Senhor das Moscas, era frequentemente questionado sobre a escolha de ter como protagonistas do seu livro 12 rapazes em vez de raparigas. O escritor dizia que era em parte por ele próprio ser homem. Além disso, "penso que as mulheres são tolas em fingirem que são iguais aos homens. São bastante superiores e sempre foram", disse Golding numa entrevista. No entanto, o escritor sentia que um grupo de rapazes seria um melhor retrato da civilização, o que perfaz a outra parte da razão por detrás da escolha.

O livro publicado em 1954 foi adaptado ao cinema pela primeira vez em 1963 por Peter Brook e depois em 1990 Harry Hook. A estória retrata 12 meninos que tentam sobreviver numa ilha. O enredo é uma sátira e crítica de costumes que termina em violência e caos. Agora em 2017, os produtores Scott McGehee e Evan Siegel assinaram um contrato com a Warner Bros. para refazer o filme, mas com um elenco de raparigas.

Pondo de parte o facto de as grandes produtoras de cinema parecerem gostar tanto de reboots, ou de novas versões de estórias antes criadas, estes produtores que querem reproduzir este enredo parecem não perceber o intuito de William Golding ao escrever este livro, o que se calhar é um aspecto importante para a execução de um filme baseado no livro. Por outro lado, temos aqui dois homens que querem criar um filme protagonizado pelo sexo oposto. Se a ideia for recriar o enredo com raparigas sem modificar as conclusões a que chegam os 12 rapazes, o filme será contrário à ideia pessoal de Golding de que as mulheres são superiores, e não fará muito sentido se for transposto para a mesma época em que o livro foi publicado e seguir os mesmos episódios de violência. Como mulher, duvido que um grupo de 12 meninas chegasse aos extremos dos meninos do livro, e em alguns casos duvido também que chegassem o mesmo grau de eficácia, como o de criar um sistema de comunicação como o que os protagonistas criaram. Nesse caso, o filme será apenas uma vaga adaptação.

No entanto, partindo do pressuposto de que a estória vai ser diferente e a equipa de filmagem vai permanecer com este rácio de homens para mulheres, se calhar o fenómeno vai ser parecido ao do Ghostbusters ou Caça-Fantasmas de 2016 com o elenco feminino, em que o filme era mau, mas depois a culpa era de só terem posto mulheres no elenco principal e não do argumento ou da realização. Eu cá não consigo levar a sério um filme assim realizado por homens a não ser que me venham dizer que vai haver um grupo de mulheres para fazer consultoria. O que seria parvo, porque há muitas mulheres perfeitamente capazes de realizar filmes e se calhar até tornar tudo isto numa boa idea. Parece-me muito mais sensato. Uma estória depende, para mim, das ambições e das motivações das personagens. Logo aí, não faz sentido ter dois homens a realizar.

Para concluir, eu cá até acho que já existe uma versão feminina do Senhor das Moscas. Chama-se Mean Girls (ou em português, Giras e Terríveis). Também esse filme foi realizado por um homem, mas ao menos quem escreveu o guião foi Tina Fey. Chama-se trabalho em equipa, e costuma resultar muito bem.

Vanessa

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Os cães azuis de Bombaim

Segundo várias notícias, desde 11 de Agosto têm-se avistado cães com uma tonalidade azul em Bombaim, na Índia. Alegadamente, a culpa é de uma fábrica de detergentes que despeja no rio Kasadi, frequentado por animais de rua, os resíduos da sua produção. O que inclui corante azul. Atentem à ironia de uma empresa que fabrica produtos de limpeza a sujar um rio e a manchar literalmente a sua própria reputação.



A área em questão, o complexo industrial de Taloja, é habitada por 977 fábricas de produtos químicos, farmacêuticos e alimentares, segundo a organização sem fins lucrativos Watchdog Foundation. A fábrica em questão foi encerrada pelas autoridades e os cães foram analisados pela autoridade protectora dos animais de Mumbai, segundo a qual dois banhos foram suficientes para o corante azul sair e os cães estão aparentemente saudáveis, depois de analisados os níveis de toxicidade do seu pêlo e o seu estado de saúde em geral.

Estima-se que existam 30 milhões de cães na Índia e que mais de metade sejam cães de rua. Em Maio o governo indiano aprovou uma série de leis que protegem vários animais domésticos ou vadios.

Devíamos agradecer a estes cães por lançarem um alerta importante para os indianos e para o resto do mundo ao porem a sua própria pele inadvertidamente em risco. Agora o desafio é outro. O fecho de uma fábrica na Índia pode ter consequências mais graves do que aqui, porque as fábricas funcionam graças a pessoas que delas dependem e muito, e além disso o fecho apenas desta com certeza não será suficiente para reverter os dados de 977 entidades tão perto de uma fonte de água, quer lá despejem directamente resíduos ou não.

Este é um problema com raízes profundas com vários culpados, incluindo o Ocidente. Não esqueçamos que é do outro lado do mundo que se produzem muitos dos bens de consumo daqui, precisamente porque o preço a pagar, literal e metaforicamente, é aparentemente mais baixo para nós. Apenas aparentemente. Afinal de contas, qualquer catástrofe natural ou de origem humana em qualquer parte do mundo... aliás, o mero bater de asas de uma borboleta seja onde for pode ter consequências sérias a quilómetros de distância, diz a Teoria do Caos. Hoje são os cães azuis, que felizmente em princípio são protagonistas de uma história com final feliz.

Mas amanhã o que será?

Vanessa

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Para o menino e para a menina

A Porto Editora comercializa dois blocos de actividades, um azul e outro rosa, para meninos e meninas dos quatro aos seis anos, sendo o azul para eles e o rosa para elas. A Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género está a analisá-los porque o bloco rosa alegadamente contém exercícios de resolução mais fácil do que os do bloco azul, e ambos recorrem estereótipos de género. O jornal Público analisou os dois manuais: "No conjunto das 62 actividades propostas, existem seis cuja resolução é mais difícil no (livro) dos rapazes e três que apresentam um grau de dificuldade superior no das meninas. Mas a maior parte das actividades reproduzem uma série de velhos estereótipos. Apenas alguns exemplos: eles brincam com dinossauros, com carrinhos e vão ao futebol, enquanto elas brincam com novelos de lã, ajudam as mães e vão ao ballet (...)" diz o artigo.

Compreendo o marketing envolvente que justifica a existência de manuais para cada género. Mas não concordo. Muito menos concordo com certas associações que se fazem entre actividades, profissões e produtos a determinado género neste século. Mas certos acontecimentos actuais que levam a este debate são ridículos. São quase sempre provenientes de estereótipos em vez de serem construtivos ou de injustiças que ainda acontecem. Acontecem porque ainda existe a ideia de que há coisas para meninos e há coisas para meninas.

Antigamente, pelo menos após o ano 1918, o rosa, cor associada à força, era para os rapazes e o azul, cor associada à delicadeza, era para as raparigas. Depois disso trocaram-se as voltas. Não se trocaram ainda as mentalidades, infelizmente. Continuamos a ter bonecas e jogos de cozinha em rosa para as meninas, e carros e puzzles em cores escuras para os meninos. Para os mais crescidos há produtos escolares em rosa e em azul. Para os adultos, produtos de depilação, desodorizantes, cremes, e produtos de higiene em geral em rosa e azul. 

Todos eles com diferenças de preço, claro. Até produtos considerados essenciais para as necessidades próprias do género são diferentes, da cor ao preço, passando pela taxa de IVA e pela imposição de uso por parte da sociedade, como por exemplo lâminas de barbear para eles (se bem que agora ter barba está na moda) e maquilhagem para elas. Não me vou pôr aqui a analisar qual dos dois, o rosa ou o azul, é o mais barato.

Digo apenas que a separação de género que tenho visto ao longo dos anos tem saído cara.

Vanessa

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Medições

Conheci em Goa uma senhora com idade para ser minha mãe que lia muito, mas que considerou o facto de eu ler tanto como um desperdício da minha juventude. Não aprofundei a questão, por isso presumi que se estaria a referir ao tempo passado a ler em vez de fazer outras coisas, mas pode ser também considerado desperdício em relação à sabedoria que me falta para compreender certas obras literárias ou à perda de oportunidades por se escolher a leitura versus outras actividades. Não quis aprofundar a questão porque não gosto geralmente de debater os meus hábitos com outras pessoas e porque não gosto que me ofereçam argumentos até legítimos que invalidem hábitos que tenho e que me são queridos e que até me melhoram enquanto pessoa.

Ninguém parece falar no assunto no que toca a séries de ficção ou filmes, e isso até considero (um pouco, não muito) desperdício de tempo, apesar de desfrutar desses passatempos. Mas os livros são um à-parte. O que se ganha com a leitura enriquece o tempo supostamente desperdiçado e mesmo que aparentemente nada se ganhe, porque compreendemos apenas parcialmente o lido ou nada de todo, trabalhamos aspectos da vida que estão em vias de extinção como a paciência, ou outros que são amplamente valorizados hoje em dia, como a resiliência e a persistência. Por isso a meu ver, nada se perde, na verdade, e muito se ganha.

Já estou numa idade em que dá para olhar para o passado e perder tempo a analisar coisas que não posso mudar, como o tempo que desperdicei em coisas fúteis, inclusivamente mas não exclusivamente: desgostos, invejas, comparações, memórias, e actividades mundanas como ver televisão e perder-me no computador. Nunca olhei para trás e me arrependi de ter lido, nem mesmo dos livros de que não gostei ou dos quais não me lembro. A leitura é o único aspecto da minha vida que está livre de arrependimentos. Tendo em conta de que até de nascer já me arrependi, e é coisa que por vezes me saltou à consciência nos pontos mais baixos da vida, o facto de haver algo que nunca me causou nem remorso nem pesar nem stress nem angústia, excepto quando o escritor é tão bom que nos faz viver o que vivem personagens, é digno de respeito.

Se eu tivesse de medir, diria que a leitura é tão imensurável quanto o valor que nos traz, tal como um pôr do sol ou um luar, e que em vez de um desperdício, é antes insuficiência permanente, rendimento passivo infinito, retorno sem riscos sobre o investimento. Nota-se que tenho feito muitos trabalhos ultimamente na área dos negócios? Para o que havia de me dar. É do calor. Talvez seja também do livro que estou a ler.

Vanessa

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Jornalixo V ou de como os millennials "optam" por casas pequenas

Recorrendo ao sarcasmo para não chegar ao insulto face ao artigo do Expresso intitulado Millennials optam por casas mais pequenas, e sendo orgulhosamente millennial por opção, já que como é óbvio escolhi a minha data de nascimento, como todos os da minha geração, tenho também a dizer que no meio de tantas outras opções, além de optarmos por casas mais pequenas, nós millennials optamos também pela precariedade. Não satisfeitos com as condições de vida das gerações antecedentes, optamos por algumas condições piores, assim como optámos por habitar este planeta mesmo com as suas crises económicas, aquecimento global e recursos limitados.

Chamar à selecção de casas mais pequenas por parte da minha geração de opção é tão correcto como chamar opção à escolha do planeta Terra em vez de Marte para habitar. É um acto tão opcional quanto: escolher trabalhar a recibos verdes quando a outra opção seria não trabalhar de todo ou trabalhar de borla num estágio, escolher emigrar quando a outra opção é lidar com o que foi referido primeiro, escolher adiar outras opções de vida como casamento e filhos pelo que já foi referido e por várias outras razões. Tantas opções que temos. Não admira que sejamos uns mimados que não querem trabalhar e sair de casa dos pais e etc.

Este tipo de artigos faz parte de uma moda que tenho observado nos meios de comunicação, uma moda que consiste em tornar agradável, trendy e aprazível uma inevitabilidade mascarando-a de escolha ou tendência. Como é óbvio, se nos fosse possível morávamos em casas grandes. Mas não é. Duh.

Optar por casas pequenas é tão inevitável como eu agora pensar que devia ter optado por não ler o artigo.

Vanessa

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

A cadeia alimentar moderna

Várias notícias hoje dão conta de que várias espécies de peixe têm confundido plástico com comida e por isso introduziram o plástico na cadeia alimentar. Ora, todos sabemos que na verdade o real responsável pela introdução do plástico na cadeia alimentar é o Homem, aquela criatura que está no topo dessa cadeia.

Por isso agora a cadeia alimentar moderna tem no topo e no fundo, indirectamente, o Homem. Diz a ONU que "se nada for feito e se continuarmos neste ritmo, em 2050 haverá mais restos de plásticos nos oceanos do que peixes." O que na verdade é aquilo que merecemos. Mas não é o que merecem todas as outras criaturas com quem "partilhamos" (aspas porque na realidade somos como um vírus destruidor) o planeta.

De acordo com a Organização das Nações Unidas, um milhão de aves e 100 mil mamíferos marinhos morrem todos os anos devido à poluição por plástico. Para colocar isto em perspectiva, segundo a Fundação Oceano Azul, são produzidos anualmente no mundo a mesma quantidade de plástico quando pesa toda a humanidade: 300 milhões de toneladas. É estimado que desse belo número, oito milhões acabem por habitar o oceano.

Como tudo o que diz respeito ao mundo moderno, so há pouco tempo começámos a medir as consequências da utilização do plástico, mas ele está aí, nos oceanos e até no nosso sal de mesa, como foi noticiado há pouco tempo. É mais uma das heranças do uso de combustíveis fósseis que se infiltrou no quotidiano. Continuamos, no fundo, como homens das cavernas, ignorantes e impávidos, mas agora com uma grande quota-parte de culpa. Quem semeia ventos, colhe tempestades. Quem semeia plástico, colhe nada. Passo a piada deste nada como substantivo e não como verbo, porque isto não tem graça nenhuma. Assim não há arca de Noé que nos safe.

Vanessa

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

E o sono o vento levou

Podia continuar a queixar-me do vento por si só, do barulho que faz que realmente não ajuda a embalar uma pessoa com insónias, mas entretanto e por ironia — ironia no sentido em que o vento viu-lhe dedicado aqui um post que fala precisamente do sujeito de todo este predicativo que se segue — os estores do meu vizinho de cima foram à vida. Não testemunhei o evento, mas tenho pena. Tenho pena porque hoje fui acordada com uma sinfonia de ferramentas, que não saberia precisar, proveniente do tecto no cimo da minha cama. 

Posto o desassossego que se seguiu, merecia ter estado na primeira fila quando o vento levou os estores aos meus vizinhos, a acreditar que foi mesmo isso que aconteceu. O ruído prolongou-se por espaços de tempo esporádicos ao longo do dia. Estão a ver como nos filmes de terror às vezes colocam uma música assim baixa e vibrante a anteceder fenómenos assustadores e uma pessoa fica em suspense porque nunca sabe quando é que esses fenómenos a vão assustar? Foi assim o meu dia. Sempre à espera da sinfonia, que culminou com uma orquestra, já a tarde ia avançada, de despojos atirados do primeiro andar cá para baixo.

O bom disto tudo é que hoje nem sequer dei pelo vento.

Vanessa

terça-feira, 8 de agosto de 2017

E tudo quer o vento levar

Eu sei que este vento tem explicação meteorológica, um anticiclone com mais um ingrediente qualquer. 

É tudo menos esta explicação aquilo em que penso quando os cabelos se me colam aos lábios de batom e o comprimento do lenço preso ao pescoço, para evitar resfriados que o vento gosta de cultivar na minha garganta, se vai enfiar entre as pernas e fico a parecer uma humana com cauda de cor de laranja.

Enquanto trabalho, o vento bate-me à janela como convite, mas depois é tudo menos convidativo quando meto os pés na rua. As persianas piscam os olhos e nunca ouvi um piscar de olhos tão sonoro como este. Parece-me antes que vou ficar sem persianas e depois lá se vai a privacidade de trabalhar junto à janela e poder espreitar os transeuntes sem eles me verem a mim, de pijama e caneca na mão e cabelo desgrenhado.

Este tem sido um verão muito esquisito, com vento e ar frio que se entranha pela frincha da janela e me faz beber chás. Os dedos gelam ainda antes de conseguirem alcançar o ritmo que o teclado pede. Vejo notícias de sol e praia, mas é tudo o que menos me apetece, porque parece outono ou um inverno em fase final.

É tudo. Só me queria queixar do vento.

Vanessa